Veja abaixo os destaques do Encontro realizado pelo Iphan em parceria com o Instituto Brasil a Gosto e outras entidades ligadas à gastronomia e à cultura nacionais

“Patrimônio Alimentar: promovendo saberes e práticas”, evento idealizado pelo Iphan e ancorado por uma série de entidades parceiras como o Instituto Brasil a Gosto, o Instituto ATA, Associação Slow Food do Brasil, Instituto Socioambiental, Centro Educacional FMU e Sesc SP, tratou da salvaguarda da cultura alimentar brasileira, nos dias 18 e 19 de outubro.

No primeiro dia, a temática foi ao palco do auditório Nelson Carneiro, da FMU, no bairro da Liberdade. Ali se reuniram autoridades, acadêmicos e os próprios detentores dos saberes em questão, vindos de vários cantos do país – baianas do Acarajé de Salvador, BA; representantes dos SAT (Sistema Agrícola Tradicional) dos Quilombos do Vale do Ribeira (SP) e dos indígenas do Rio Negro (AM), assim como representantes dos produtores de queijo de Minas.  Essas são quatro das seis práticas ligadas à alimentação reconhecidas pelo Iphan como patrimônio cultural do país.

“Quando falamos de patrimônio cultural, não falamos só do objeto ou da prática em si. Patrimônio também são as pessoas que o fazem e ele depende delas para existir, persistir e ser preservado”, declarou Hermano Queiroz, diretor do Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan. “É preciso mostrar a importância e aumentar a relevância desses indivíduos porque eles são o patrimônio. E o registro é importante para que os saberes sigam e, consequentemente, nossa cultura se mantenha preservada”, complementou Estela Vilela, Procuradora Federal, em exercício no Iphan.

Nesse sentido, ficou claro durante o evento, que medidas paralelas precisam coexistir. É o caso de uma série de ações que o Instituto Brasil a Gosto vem desenvolvendo em 2019 #pelacozinhaquilombola. Entre elas esteve uma expedição, um fórum e um novo livro  (para saber mais, clique aqui). “O Brasil a Gosto tem a cozinha brasileira como sua bandeira, seu lema, sendo um grande disseminador da nossa cultura. Por isso me juntei à entidade neste ano, figurando como Embaixador. Juntos estamos nos debruçando na pesquisa que já faço há mais de dez anos sobre a comida dos quilombos”, declarou o chef Guga Rocha, alagoano – que contou que sua mãe nasceu em União dos Palmares, conhecida pelas terras quilombolas. “Toda essa pesquisa vem da oralidade, não havia e não há registros e até por isso estamos trabalhando para isso. Já temos mais de 460 receitas catalogadas e tudo foi garimpado no diálogo, naquele contato sentimental e embrionário que a cozinha, felizmente, tem como um traço muito forte”, complementou ele. 

A seguir, veja destaques da cada temática abordada no evento:

Cultura quilombola
“Como a salvaguarda, que chegou em 2014, mudou a nossa vida na prática?”, João da Mata, quilombola do Vale do RIbeira, não titubeou ao responder: “No início, pensei, ‘salvaguarda’, o que é essa palavra difícil? Aos poucos, fui entendendo que era o modo de salvar o que a gente fazia e que estava se perdendo: as festas, as danças, as comidas. E isso tudo é saúde. Nunca fui internado, só tomo remédio natural, tenho quase 90 anos. Essa é a semente que temos que preservar: vida é roça e roça é vida.”

“É importante manter o quilombola no seu lugar, na sua terra, não só para a gente e para o presente, mas para os que ainda virão. Hoje, nossos filhos e familiares querem ir embora, querem diploma e enxergam o quilombo como algo monótono e que não lhes dá perspectiva. Como será daqui a 50 anos? Nossa cultura ainda vai existir?”, questionou Leonila Pontes, também vinda da mesma região, bisneta de um africano da Nigéria, cujo avô foi criado por índios. “Tenho 70 anos e sempre trabalhei na roça. A sabe onde e o que plantar. Não necessitamos que alguém, dentro de um escritório, determine um calendário para isso. Sem a agricultura familiar não tem jantar. É a enxada que diz o que devo fazer. Onde eu piso descalça, a maioria das pessoas não iria nem de sapato”, lembrou a agricultora, que é também poetisa. 

Os índios e a terra

O Sistema Agrícola do Rio Negro (AM) foi outro tema amplamente discutido na ocasião. Sandra Gomes Castro, indígena da etnia Baré, no Noroeste da Amazônia, quase na fronteira entre a Colômbia e a Venezuela, é importante líder na região, pesquisadora, e participou da elaboração do Dossiê do SAT Rio Negro. Ela enumerou os pontos importantes que a salvaguarda, instituída em 2018, trouxe: Manutenção da cultura dentro da própria comunidade em um momento importantíssimo em que a chegada dos alimentos industrializados tem sido muito forte, afetando a saúde e o viver nas tribos. Depois da salvaguarda, o alimento que produzimos passou a ser comprado pelo governo  para a merenda escolar da região. Também foi feito o registro de 263 espécies nativas que estavam sendo esquecidas, perdidas, extintas. “O povo do Rio Negro passou a ter orgulho de si”.  

Já Adão Francisco, da mesma etnia e diretor da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), destacou outra questão que lhes é importante: o território. “Nós temos nossas terras e vivemos como indígenas. É uma ciência nossa! Mas, precisamos da segurança da terra demarcada, não podemos correr o risco o tempo todo de sermos invadidos”. 

O queijo artesanal

“O queijo leva o termo artesanal justamente porque precisa do artesão: é ele que vai sentir, no dia, se o leite está mais gordo, mais quente, e como isso vai determinar o feitio do queijo. Todo dia é diferente, consequentemente, todo queijo é diferente. E isso os tornam produtos únicos. Cada produtor tem a sua característica e a indústria não consegue entender e quer padronizar tudo”, Luciano Carvalho, produtor de queijo Canastra em Medeiros (MG). 

Alexandre Honorato, de Araxá, um dos pioneiros na produção do queijo de leite cru em Minas, complementa: “O que eles não conseguem entender é que trata-se de um alimento, não de um produto. Mesmo que eu use o ‘pingo’ (ingrediente vital na produção do queijo) do meu vizinho, o meu resultado não será igual ao dele. Pode ser similar no primeiro, segundo dia, mas no terceiro já será diferente porque está em outro ‘habitat’, com as bactérias da minha produção. É algo que não dá para engessar, é vivo. Vejo que o caminho, depois da salvaguarda conquistada em 2008, e do Selo Especial da Aprocan (veja mais aqui), é entrar em um consenso entre produtores, indústria e legislação, já que o tantos prêmios que a gente vem ganhando no exterior, sobretudo na França, conhecida pela excelência dos queijos, mostra que, sim, nosso produto é de qualidade. Neste ano, ganhamos mais prêmios que franceses e suíços juntos (saiba mais aqui). Mas continuamos tendo dificuldades de vender nosso queijo no Brasil e importando queijo europeu”. 

As baianas do acarajé

Toda vendedora de acarajé é um patrimônio? “Para ser considerada baiana do acarajé, não é só sentar no tabuleiro, não é só vender o preparo. É ancestralidade, religião, respeito: ao ofício que ela serve, à comida, à cultura”, disse Rosa Coutinho, representante da ABAM – Associação Nacional das Baianas de Acarajé, Mingau, Receptivo e Similares.

 “Podemos dizer que o acarajé ganhou as ruas quando ainda existia a escravidão. E foi a primeira comida de rua do Brasil, ou seja, uma das primeiras formas de renda das mulheres. São mais de 300 anos de história”, celebrou Eleonora Alves, conhecida como Doné, uma legítima ‘baiana do acarajé’. 

“Por tudo isso é que a ABAM precisava tanto da salvaguarda, que foi conquistada em 2005. Agora, nosso maior desafio é chegar a terrenos difíceis para a gente, como São Paulo – o Estado e a capital. Não conseguimos entender como essa terra, que tem a imigração como ponto forte da cultura, não enxerga a baiana do acarajé. Se é um patrimônio reconhecido, elas poderiam estar na rua vendendo o seu produto, gerando renda e preservando a nossa cultura e hábitos alimentares. Mas, aqui, isso é muito difícil. Será que a única forma de continuar fazendo acarajé é a desobediência civil? E nem vou me estender muito na questão do ‘acarajé gourmet’, de negócios e restaurantes voltados para esse fim, que na minha opinião, são apenas estabelecimentos comerciais, sem comprometimento com a nossa cultura”, argumentou Rita Maria de Ventura dos Santos, também da ABAM. 

O patrimônio na mesa 

Para a pausa entre os debates, nosso chef Max Jaques, produziu, com ajuda de alunos do curso de gastronomia da FMU, para o café da tarde, três receitas bem brasileiras  com ingredientes trazidos pelos detentores participantes: pão de banana com rapadura do Vale do Ribeira e castanha do Brasil; pão recheado com queijos Araxá e Canastra e pimenta Baniwa; e pudim de tapioca com rapadura e calda de abóbora, vinda das comunidades quilombolas.

Interação pública

Como uma forma de dialogar diretamente com a população, o segundo dia do evento foi em um espaço conhecido pela democratização da cultura: o Sesc, mais especificamente, na unidade da Vila Mariana, na Zona Sul da capital. No hall principal aconteceram uma feira de produtos, além de rodas de conversa e oficinas com os detentores. Sandra Gomes Castro, por exemplo, ensinou o preparo da quinhapira, receita típica do Alto Rio Negro, que leva peixe em um apurado caldo de pimentas e é consumida, praticamente, o dia todo por lá (veja como preparar aqui). Foi auxiliada por nosso chef, Max, que também deu apoio a uma degustação de queijos de Minas, acompanhados de doce de leite e café. Os quilombolas do Vale do Ribeira puderam mostrar algumas de suas receitas, caso do beiju feito de massa de mandioca e da salada de mamão verde, com auxílio da chef Claudia Mattos, do Espaço Zym, membro da Associação Slow Food Brasil. 

Na feira, as baianas puderam fazer o seu acarajé, os indígenas venderam cestarias, farinhas e pimentas; os mineiros comercializaram os queijos e os quilombolas, os produtos derivados da banana, como chips e farinha. E a melhor notícia: muita coisa acabou ainda no meio do dia, quase ninguèm ficou com mercadoria parada, e o público pode voltar com as sacolas bem abastecidas para casa. 

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